Às
vésperas do afastamento de Dilma, Lava Jato rejeitou delação que prenderia
Temer
Conversas no Telegram,
mostram que procuradoria não viu interesse público nas acusações contra o então
vice em 2016. “Você acha que o Supremo ia me autorizar?” se defende Janot.
Duas semanas antes de Michel
Temer assumir a presidência interinamente devido ao afastamento de Dilma
Rousseff, pelo processo de impeachment na Câmara em 17 abril de 2016, a
Operação Lava Jato recebeu um “anexo-bomba”
de uma delação premiada que, se aceito, poderia ter mudado os rumos da história
recente do país. Conversas entre procuradores da Lava Jato no Telegram, obtidas
pelo The Intercept e analisadas em
conjunto com o EL PAÍS, permitem
rastrear o momento exato em que a procuradoria teve em mãos informações que
poderiam levar a uma investigação do então vice-presidente por suspeita de
corrupção. Na época, porém, os procuradores consideraram que as declarações não
atendiam ao “interesse público” e não
aceitaram a proposta de delação. Mas,
três anos depois, essa mesma delação foi utilizada pela Lava Jato para uma ação
penal contra Temer e para pedir a prisão preventiva dele, já na condição de
ex-presidente.
No exato dia em que
procuradores do Paraná receberam o documento da delação contra Temer, em 2016,
o então advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, fazia a defesa de Dilma
Rousseff na comissão do impeachment da Câmara dos Deputados. Marcelo Odebrecht
já havia sido condenado pela Lava Jato e o ex-presidente Lula também fora alvo
de um mandado de condução coercitiva. Temer, por sua vez, era apontado como um
dos articuladores do impeachment. Neste cenário, a acusação contra ele não era
um evento trivial. Naquele ano, a Lava Jato fechou pelo menos 108 acordos de
delação, segundo a planilha Colaboração Todos
(19.12.2017) compartilhada no Telegram pelos procuradores. Isso sem contar
os acordos de leniência com empresas.
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Imagem do "anexo-bomba" da delação de José Antunes Sobrinho, sócio da Engevix, de 2016 |
Era um momento
peculiar, o auge da operação, como relata o ex-procurador-geral Rodrigo Janot
em suas memórias recém lançadas Nada mais que Tudo. “Eu só não diria que éramos
mais populares que Jesus Cristo porque não quero cometer o mesmo erro de um dos
Beatles, que ousou tocar em um mito religioso, sem se dar conta do peso da
religião”, escreveu Janot, no livro. “O fato é que nós, procuradores, juízes e
policiais, experimentávamos uma popularidade nunca vista antes no meio
jurídico”, acrescentou.
Em 21 de junho de 2017,
e com Temer já no poder e enfrentando problemas com Janot, o procurador Athayde
Ribeiro disse nas conversas de Telegram que a menção ao então vice feita um ano
antes era um “anexo-bomba”. Àquela altura, Temer já era presidente oficial
desde agosto de 2016, quando o Senado confirmou o impeachment de Dilma. “Leo,
so rememorando q Rj, PR e BSB ja haviam negado acordos pra Engevix e
executivos. Os anexos da epoca nao se mostraram interessantes; e tb pq nao se
mostraram confiaveis, tentando jogar c "anexos bomba" aos 45 do
segundo tempo, tentando nos intimidar c a Veja e por n ter apresentado provas
de corroboracao”, disse o procurador Athayde Ribeiro ao procurador
Leonardo Cardoso de Freitas no Telegram — a grafia original usada nos chats foi
preservada. A menção à Veja parece
remeter, na verdade, a uma reportagem da revista Época (semanal que concorre
com a Veja) que publicou em abril de 2016 as revelações que Antunes tinha em
sua proposta de delação.
Do
"não" documentado à volta por cima em 2018
Diante da postura de
procuradores da Lava Jato de Curitiba, Brasília e do Rio de Janeiro de rejeitar
insistentemente o acordo de delação premiada com Antunes em 2016, seus
advogados protocolaram ainda naquele ano uma petição no Ministério Público
Federal no Paraná para reiterar que o empreiteiro continuava interessado no
acordo. Em resumo, os advogados de Antunes pediram que, caso a proposta fosse
rejeitada definitivamente, os procuradores assumissem por escrito que essa
recusa partiu deles e prometessem que eles não usariam as informações em nenhuma
investigação contra o empreiteiro.
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Cópia do depoimento de José Antunes Sobrinho, da Engevix, em 2018, no inquérito dos Portos |
Em 24 de junho de 2016,
o procurador Paulo Galvão compartilhou com os colegas o texto da certidão que
foi entregue aos advogados. “Cumpre, preliminarmente, certificar que as
negociações para eventual acordo de colaboração premiada com o réu José Antunes
Sobrinho foram formalmente encerradas, consoante informado aos causídicos em
reunião realizada em 5 de abril de 2016, na sede da Polícia Federal de
Curitiba”, diz um trecho da certidão, que alegou genericamente “ausência
de interesse público na continuidade das negociações”.
A delação de Antunes
acabou retomada e homologada em 2018 por um caminho tortuoso. Temer foi
delatado numa operação de enorme apelo midiático pelo empresário Joesley
Batista, sócio da JBS, em maio de 2017, quando vieram à tona as conversas
gravadas por Joesley em que Temer disse “tem que manter isso, viu?” depois de o
empresário relatar que estava com as “pendências zeradas” com o ex-deputado
Eduardo Cunha (PMDB), ex-presidente da Câmara e aliado de Temer que deflagrou o
processo de impeachment contra Dilma.
Nessa conversa gravada,
Temer também recomendou a Joesley que procurasse o ex-deputado Rodrigo Rocha
Loures, para resolver problemas da JBS no governo. Após combinações com o
empresário, Rocha Loures recebeu uma mala de propina de 500 mil reais, que,
segundo Joesley e investigações da Lava Jato, eram destinados a Temer. Essa
mala de dinheiro motivou a primeira ação penal apresentada contra Temer A ação
penal acabou tendo a tramitação suspensa pela Câmara dos Deputados em agosto de
2017.
As conversas de Rocha
Loures com representantes da JBS, no entanto, também levantaram suspeitas sobre
outro assunto, de que uma nova lei para a gestão de portos brasileiros,
sancionada por Temer em 2017, visava uma troca de propinas de empresas do setor
portuário. Foi então que a delação da Engevix ganhou uma nova chance num
inquérito sobre portos, que investigou, ao longo de 2017 e 2018, a atuação de
Temer na sanção dessa nova lei do setor. A PF argumentou que o coronel Lima
tinha recolhido propinas para Temer de empresas do setor portuário, da JBS e
também no caso da Engevix. Antunes finalmente assinou acordo de colaboração com
a Polícia Federal —e não com os procuradores diretamente— em junho de 2018,
quando faltavam seis meses para Temer deixar o poder.
O inquérito dos portos
motivou uma ação penal contra Temer. Quando ele deixou o Planalto e perdeu a
prerrogativa de foro privilegiado, o caso da Engevix e da Eletronuclear foi
distribuído para o juiz Marcelo Bretas e a força-tarefa da Lava Jato no Rio. No
fim de fevereiro de 2019, já sob o Governo de Jair Bolsonaro, Antunes prestou
novo depoimento a procuradores do Rio, como parte de sua delação homologada
pelo ministro Roberto Barroso. Repetiu a versão apresentada em abril de 2016 da
propina de 1 milhão de reais a Temer, por intermédio do coronel Lima, em troca
de contrato na Eletronuclear. Acrescentou que as negociatas também envolveram
seu ex-ministro Wellington Moreira Franco e o empresário Rodrigo Castro Neves
(ex-sócio do ex-senador Eunício Oliveira).
Um mês depois desse
depoimento, Temer foi preso preventivamente com base nesse relato e nas
investigações complementares sobre como funcionou um esquema de corrupção da
Eletronuclear. Já tinham vindo à tona os comprovantes bancários e e-mails
envolvendo o pagamento delatado por Antunes – e os procuradores, então, foram
atrás e conseguiram o depoimento espontâneo do empresário Marcelo Castanho,
diretor da Alúmi, que fez o repasse de 1 milhão de reais para o coronel Lima.
Para prender Temer, os procuradores também argumentaram que o ex-presidente era
acusado em ações penais de ter sido beneficiário de propinas e que era
investigado em outros inquéritos por corrupção. Temer ficou menos de uma semana
na cadeia e hoje responde em liberdade ao processo.
Sem
consistência, segundo Janot
Em entrevista ao EL
PAÍS, o ex-procurador-geral Rodrigo Janot defende sua decisão, em 2016, de
rejeitar a delação de Antunes. Ele diz avaliar que não conseguiria apoio no
Supremo Tribunal Federal para abrir uma investigação contra Temer com base no
relato. “Você acha que o Supremo ia me autorizar a investigar o vice-presidente
da República com algo que não era consistente?”, afirmou. Pelo cargo
que ocupava, Janot foi o último responsável por rejeitar a delação da Engevix
em 2016. O ex-procurador-geral reconhece que sabia da menção ao então
vice-presidente na proposta de delação de Antunes, e que era “informado
o tempo todo sobre a delação da Engevix”. Porém, desqualificou o
delator como fonte crível, embora o empreiteiro tenha sido considerado
fidedigno pela Polícia Federal, em 2018, pela ex-procuradora-geral Raquel Dodge
e por procuradores do Rio em 2019.
Janot argumenta que
Antunes “titubeava o tempo todo” e que o caso Engevix foi “sem
importância”. “Não era acordo relevante para a gente.
Tanto foi que quando teve algo concreto, [Temer] caiu. Caiu não, mas foi
processado duas vezes”, disse, sem especificar o que seria “algo
concreto”.
Em seu livro, Janot
afirmou, de maneira errônea, que a prisão do ex-presidente foi motivada pelo
caso da mala de dinheiro da JBS entregue ao ex-deputado Rocha Loures (MDB). Mas
Temer, na verdade, foi preso por ordem do juiz Bretas, a pedido da força-tarefa
da Lava Jato no Rio, pelo pagamento de propina da Engevix e pelas investigações
do esquema de corrupção na Eletronuclear. Ao EL PAÍS, Janot admitiu que a
informação em seu livro, sobre o motivo da prisão de Temer, foi um erro e que
será corrigido.
Questionada sobre a
razão de a delação envolvendo Temer não despertar o “interesse público” em
2016, a força-tarefa do Paraná disse que “houve consenso entre mais de 20
procuradores” a respeito. A procuradoria não respondeu por que
procuradores do Rio de Janeiro usaram a mesma delação em 2019 para prender
Temer. “Relatos de colaboradores avaliados como inconsistentes, incompletos ou
desprovidos de provas podem ser recusados”, afirmou o MPF do Paraná em
nota enviada ao EL PAÍS. Afirmaram ainda que “as forças-tarefas participam das
negociações e opinam, mas a palavra final é do procurador-geral.”
Procurado, o advogado Antônio
Figueiredo Basto, que atende Antunes, também afirmou que não pode comentar
sobre como se deu a negociação da delação de seu cliente, pois o caso está sob
sigilo. Os procuradores do Rio não quiseram comentar o assunto.
Michel Temer é réu em
seis processos criminais. Ele foi absolvido sumariamente nesta semana, sem
julgamento, em um desses processos, por obstrução de Justiça, justamente o que
analisava isoladamente se o ex-presidente causou embaraço à Justiça quando
falou “tem que manter isso” ao empresário Joesley Batista. A
assessoria de Temer também foi questionada a respeito do conteúdo desta
reportagem, mas até a publicação não havia respondido.
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